Tempo da linha que costura,
tempo da linha de pensamento que se segura,
tempo da linha da pintura...



quinta-feira, 8 de maio de 2014

As listras do tempo: figura e fundo de momentos

Depois de tanto tempo ausente deste espaço, refaço o meu tempo e deposito história...longa...

Assisti ao filme “O Menino do Pijama Listrado” e diante e dentro de mim eclodiram memórias, emoções e considerações que se fizeram imprescindíveis saltarem-se do interno e exteriorizarem-se... Alinhavaram a mim mesma...

Quando o filme começou lembrei-me imediatamente do meu pai...dos tempos em que se deitava, parava de pensar ou se preocupar, paralisava o seu tempo com seu maior prazer - o de parar por horas a própria vida objetiva e entrar nesse campo da vida dos outros que desenrolam e que no final ou durante sempre trazem de volta a nossa, própria...entrar na magia de compartilhar realidades disparadoras de emoções tão diversas...e o gostoso é este, de sentir, de pensar, de não ser mais o mesmo... compaixão, alegria, tristeza, admiração, reflexão...

Depois que acabava ele pegava seu caderno e anotava o nome do filme, os atores, as frases importantes para ele e adorava...registrar. Eu achava tão bonitinha a sua dedicação e sua considerável disciplina.

O registro. As marcas das coisas boas que a gente tenta segurar ou não esquecer como pode...a tentativa de que aquilo fique ali...dentro, por mais tempo...ou que seja ativado de novo, novamente, mais uma vez...

“ A infância é medida pelos sons, aromas e cenas antes de surgir a hora sombria da razão.” John Betjeman. É a frase inicial do filme...

Sua primeira cena é a brincadeira de crianças pelas ruas de Berlim em meio a bandeiras do nazismo em praças e regiões da cidade... Era Bruno e seus amigos saindo da escola e indo para as suas casas fazendo-se de aviões pelo caminho... Uma família com dois filhos, uma de 12 anos e um de 8, Bruno. O pai, um comandante que acabara de subir de patente e haveria uma festa comemorativa por isso e no outro dia, mudança de casa. A mãe dera as duas primeiras notícias em tom comemorativo, muito feliz pelo ocorrido. A segunda, sentaram para conversar. Bruno foi contra, não queria deixar seus amigos...sua irmã acreditava que se os pais estavam dizendo que era o melhor, deveria ser mesmo.

Circunstâncias paternas que circunscrevem e conformam destinos que não existem escolhas ou opção a não ser a submissão...mas importante e muito bonito sentar, dialogar, tentar explicar, gerar compreensão... lembrava-me da minha saída decidida e protetiva da casa de minhas filhas (pois não era mais minha...) para morar na Ribeira...  Viemos, para a pequenina casa, arrumei como pude...coloquei seus objetos, camas, guarda-roupa, cômoda, brinquedos e decorei com adesivos e princesas emborrachadas. A busca de que o rompimento e a vida nova fosse acompanhada da maior familiaridade e conforto possíveis...

Peguei um brinquedo de encaixe delas de e.v.a. (emburrachado) em formatos diversos – casa, carro, árvore, coração, estrela, etc – e fomos conversando, montando histórias para que eu entendesse melhor elas e elas entendessem melhor o que estávamos vivendo...

Sempre que fica difícil tudo isso, o contexto de mudanças tão bruscas, partes da vida atual que não se aceita, é gostoso conversar com elas, é gostoso não estar alheia aos seus sofrimentos, de fazer acordos e concessões possíveis e de também ser firme com aquilo que não pode ser mudado e precisa ser enfrentado ou aceitar adaptação.

Bruno tentou se adaptar e lidar com o tédio em sua casa nova, brincando de dama sozinho, ou de balanço, ou na frente vigiada da casa. Eles foram para uma casa em uma floresta, isolada e próxima de um campo de concentração. Ele viu de sua janela e pensava que era uma fazenda com crianças e fazendeiros estranhos que vestiam pijama...perguntou a mãe se poderia brincar com as crianças da fazenda que via de sua janela...ela desconversou, pediu que se retirasse depois de ter entrado um judeu que trabalhava na casa, para eles. Depois foi verificar o que o filho via da janela. Ele sentou com o pai e perguntou sobre a fazenda e as pessoas estranhas, ele disse que aquelas pessoas não eram consideradas gente. A mãe chegou e disse que esquecesse, afinal aquelas pessoas eram estranhas como ele disse... Depois questionou o marido porque foram morar tão perto de um...

A gente trabalha com gente que não é considerada gente...a gente trabalha para que eles tenham outra experiência, que sejam reconhecidos, cuidados, tratados, entendidos...de outra forma...

Esses filmes sempre doem muito em mim. Doi lembrar do registro no planeta de tanta violência, autoritarismo, prepotência, vaidade suprema, desconsideração...

Doi verificar a permanência disso tudo ainda aqui...conosco.

Sinto-me livre quando me posiciono contra a Escola e suas formas de autoritarismo, repressão, normatização e violência sutil...recentemente retirei as minhas filhas da escola que estavam por não aceitar tudo isso e tem sido um importante momento o do encontro com a coerência. Libertador...para nós três inclusive.

Tem uma mulher em situação de rua que vive em uma praça próxima a nossa casa, que era caminho da escola...todos os dias passávamos por ela e as meninas brincavam no parque com ela lá...sempre...sempre me perguntavam sobre as pessoas que moram nas ruas e sempre conversamos sobre.  Seu nome, por incrível que pareça é Marciana... Um dia, indo para escola, Marciana estava sentada em um banco e fomos passando perto, quando Morena paralisou e gritou “Não! Não mãe!”. Perguntei o que era e ela respondeu para que eu não me aproximasse senão ela ia me pegar. Respirei!! De onde viria aquela informação tão medrosamente registrada? Neguei, sentei do lado de Marciana enquanto dava bom dia, perguntava seu nome e afirmava que ela não iria fazer nada disse a Morena: “Não acredite em tudo que te dizem! As pessoas pensam muitas coisas que não devem, estão enganadas!” Marciana, sempre com seu sorriso manso, sua quietude própria fez perguntas, conversamos e fomos embora. Nós fomos conversando sobre o ocorrido e eu questionando a ela sobre o que fazia ela pensar aquilo, se já tinha visto Marciana com algum comportamento justificador, etc. Foi mais uma vez que verifiquei a importância de compreender as referências de cuidado de quem cuida delas na minha ausência... Refleti sobre as ausências de controles inevitáveis e existentes na vida... agradeci muito por isto ter acontecido... por ter estado ali...

Nos dias seguintes Clara dava aquele bom dia largo e alto à Marciana, eu em seguida e Morena observava, aprendia e se dava espaços gradativos de permissão... depois de alguns dias, todas compartilhávamos o bom dia celebrativo a Marciana... Eu cada vez mais admirada com o crescimento delas por dentro. Dias atrás, separamos doces em saquinhos para crianças de um orfanato próximo criando nelas – por elas – a expectativa e o desejo de verem as crianças felizes. Cada uma fez seu primeiro saquinho de doces e cada uma escolheu dar, este primeiro, à Marciana... e deram, cuidadosas, satisfeitas e orgulhosas...lindas. 

Eles lacraram com madeiras as janelas do quarto de Bruno...

São muitos os equívocos que a educação doméstica e escolar ainda cometem...assassinando a infância...comprometendo valores, almas, etc.

Tem um exemplo que eu adoro...Um avo conversando com sua filha diante do problema de ter uma piscina em casa e uma neta de 3 anos...pensaram em cercar a piscina para protegê-la do perigo...e muitas, e tantas, e outras alternativas protetivas... quando resolveram ensiná-la a nadar...assumindo e dando permissão a potência de autonomia intrínseca ao humano e sua imprescindível trajetória de se assumir, inscrever-se.
Este exemplo para mim é hiper emblemático de como as coisas estão sendo e de como devem ser...

Bruno descobriu uma saída no fundo de casa e se foi, desbravando a floresta, até que encontrou o fundo do campo de concentração, encontrando um menino de mesma idade chamado Esmur... ficaram amigos... todos os dias se encontravam... Bruno esperava a mãe sair e levava comida para ele e queria saber da fazenda, Esmur negava de algum modo as fantasias de Bruno...conversavam...muito. Um de dentro do campo sempre de cabeça baixa, ou se escondendo, o outro do outro lado da cerca, achando injusto Esmur não poder estar ali com ele do outro lado para explorar...
Seus encontros eram findados com a sirene e o susto de Esmur que precisava ir correndo empurrando o carrinho de mão que justificava porque estava tão longe...

Espaço infantil...de magia...de descoberta...de entendimentos sem dimensões reais... São tantas lembranças e preocupações...

Levava bola, mas não podiam brincar juntos, levava dama e quem mexia no tabuleiro era Bruno...do seu lado.
Para diminuir o tédio dos filhos, o pai crente de que tudo que fazia era para tornar o mundo melhor para todos, firmado na existência necessária de reconhecimento e poder social, defensor da pátria, chamou um tutor para levar estudo aos filhos. Este era um homem com seus 60 a 70 anos que retirou a leitura de livros de aventura com explorações de Bruno e incutiu livros da realidade da guerra, de quanto os “judeus são maldosos, culpados por destruição e tudo de ruim...”
Bruno estava no conflito. Perguntou afirmando que haveria de ter um judeu bonzinho, a resposta foi de que se um dia ele encontrasse algum ele seria o melhor explorador que houvera. Ele sorriu, com a certeza que estava fazendo o certo...

Ainda é muito constante um reconhecimento de periculosidade nas pessoas por elas serem diferentes ou por não se adequarem ou desinstabilizarem o sistema vigente. Ainda temos muito o que construir e desconstruir para a redução disto na alma humana social. Sabemos que nesta pista correm automóveis das situações de violação e violência, impulsionados por combustíveis de autoritarismo misturado com controle quando deveriam ser mais ecologicamente adequados movimentando-se com combustíveis da compreensão e do entendimento alheio.

Bruno um dia perguntou que cheiro forte e ruim era aquele que ele um dia sentira...não teve respostas em casa...com Esmur visualizou duas chaminés e perguntou a ele se era de lá que saia aquele cheiro e o que eles queimavam...não teve respostas...
Sua mãe sentiu o cheiro um dia e perguntou ao soldado que estava ao lado, tendo um comentário espontâneo como resposta “até queimando eles fedem”. Ela olhou para os lados, para a fumaça, sentia o cheiro, olhava para o soldado... angustiou-se...
Depois, ela foi tentar bradar a sua indignação com o marido... a incompreensão de que estava a fazer aquilo... a sua falta de aceitação com suas condutas... a impossibilidade de tê-lo...fim da admiração, fim do respeito humano, fins...

Existem situações vividas prenhas da clareza do que não suportamos e com isso encerramos trajetórias e caminhos. Situações de invasão e violência pessoal ou com outrem. Ficamos com os fatos e mesmo respirando muito e buscando compreensão alheia, esperando manifestação de respeito do agente e tendo... reconhecimento de que não há qualquer problema e sim está tudo muito normal... Então, não cabe mais dentro da gente o afeto que antes cabia... não por inocência de que se as vezes escolhe-se agredir por qualquer ou pouca coisa, mas porque fica o gesto e a dor em desacreditar... seja na pessoa, ou em palavras proferidas, seja nas vezes em que um choro aparece como evidência de sensibilidade, ou em que descrições de vivências configuravam uma pérola em meio a um oceano poluído... Enxergamos a possibilidade da existência de espaço interno de aceitação, de identidade, de concretizar a violência... despropositadamente ou com interesses individuais injustificáveis e inaceitáveis.

A mãe quis ir embora e tirar os filhos de lá. Bruno não queria ir. Sua irmã sim.
Bruno anunciou a Esmur que iria embora no dia seguinte...”então nunca mais nos veremos?”, perguntou Esmur. Bruno respondeu que ele poderia ir em Berlim quando quisesse para visita-lo...”. Esmur contou que seu pai houvera sumido, que saiu para um trabalho e não voltou mais...Bruno combinou que o ajudaria a procurar o seu pai antes de ir embora (devia uma grande atitude de amizade a Esmur).  

No dia seguinte, preparou um grande sanduíche de despedida, levou uma pá para passar para o outro lado e Esmur trouxe pijamas e gorro...

Fiquei nervosa, querendo ver as próximas cenas...não estava suportando o fio da navalha que a inocência infantil estava os levando...na dúvida se suportaria ver o pior acontecendo... preocupada com o como uma criança ia dar conta de uma realidade daquelas desvelada daquela maneira...como ia ser ele, como ia ser sua vida depois daquilo?
Nossa! Que agonia!

Uma mudança de roupa...uma igualdade...uma curiosidade...uma cumplicidade...um desconhecimento...e destino modificado definitivamente.

Eles foram levados, daquele jeito empurrados, imprensados... juntados em massa, retirados da última identidade social uniformizada que possuíam... recolocados na única identidade uniforme que existe... nus...iguais.

Seus pais correndo em desespero em sua busca...

Sem saber o que aconteceria, realizaram a maior prova de amizade e companheirismo: mãos dadas para atravessar o que quer que seja que virá...

Bruno e Esmur... igualizados...

Os gritos de seus pais... 

Minha cumplicidade com a dor desesperada de uma perda como essa...
Minha angustia com a impossibilidade de saber de mais perto o que as minhas filhas fazem diariamente...
Minha satisfação com a ausência de repressão severa e violenta com elas e a existência de diálogo e amizade construída entre nós...
O medo de passar por essa dor... o reconhecimento de como seria insuportável...
O entendimento cada vez maior de que é a confiança, a amizade, a conversa, a flexibilidade...o melhor.

Queimados.

A esperança de que aquele homem pudesse depois daquilo se tornar outra pessoa...despetalar e desabrochar...

Acabei esta escrita com Arnaldo Antunes cantando: “o seu olhar melhora o meu...”


O desejo de que as pessoas se enxerguem mais...e se melhorem...Cuidado. Afeto. Gentileza. Honra.  

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